Por que Oficiais Deixam o Setor Marítimo? Causas, Consequências e Caminhos para a Retenção

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A Marinha Mercante brasileira enfrenta um problema silencioso, mas de consequências profundas: a evasão precoce de oficiais qualificados. Mesmo após anos de formação rigorosa, muitos profissionais abandonam a carreira embarcada nos primeiros ciclos de trabalho. O fenômeno se repete em diversos segmentos — cabotagem, apoio marítimo, offshore — e expõe fragilidades na estrutura de gestão de pessoas no setor. Com a expansão da frota nacional, compreender as causas dessa evasão e atuar sobre elas é fundamental para garantir segurança operacional e competitividade.

As razões por trás da saída precoce

Segundo dados do Sindmar (Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante), até 60% dos oficiais formados deixam a vida embarcada nos primeiros anos de atuação. As motivações são diversas, mas podem ser agrupadas em quatro grandes categorias:

  1. Escalas longas e desgaste pessoal A rotina embarcada impõe afastamentos prolongados de casa. Regimes como 60×60 (sessenta dias embarcado, sessenta de folga) são comuns na cabotagem, enquanto no offshore, há escalas de até 28×28. Esses períodos, embora compensados por dias de descanso, impactam fortemente a vida familiar, especialmente entre profissionais que iniciam ou pretendem constituir família.

Além disso, o isolamento a bordo, o ambiente confinado e a sobrecarga emocional do trabalho constante afetam o bem-estar físico e psicológico dos marítimos. A falta de apoio psicológico estruturado e o estigma sobre saúde mental no setor agravam a situação.

  1. Salários estagnados e desvalorização financeira Embora os salários dos oficiais brasileiros estejam entre os mais altos da indústria nacional, sua evolução nos últimos anos tem ficado aquém da inflação. Durante a crise do petróleo (2015–2020), muitos acordos coletivos foram congelados, e apenas recentemente os reajustes começaram a compensar esse período. Mesmo assim, ganhos reais ainda são pontuais.

A percepção de estagnação, somada às exigências da profissão, leva muitos profissionais a buscar alternativas em terra, onde a relação esforço-remuneração parece mais equilibrada. Em alguns casos, cargos administrativos ou técnicos em empresas do setor oferecem salários equivalentes, mas com rotina fixa e previsibilidade.

  1. Falta de perspectiva de crescimento Apesar da carreira marítima ter uma hierarquia clara — do segundo oficial até comandante ou chefe de máquinas —, a progressão nem sempre é rápida. O ritmo de promoção depende da disponibilidade de vagas nas empresas, o que nem sempre acompanha a ambição ou o desempenho dos profissionais.

Essa lentidão gera frustração, especialmente entre jovens oficiais. Muitos acabam migrando para a praticagem (mediante concurso) ou para áreas administrativas, onde acreditam poder alcançar cargos de liderança com mais agilidade.

  1. Falta de capacitação continuada e reconhecimento O setor ainda carece de programas estruturados de capacitação técnica ao longo da carreira. Muitos oficiais precisam buscar, por conta própria, cursos de atualização ou certificações internacionais. Isso gera custo, insegurança e desmotivação.

Além disso, há carência de políticas de valorização que reconheçam o tempo de serviço, a dedicação e a excelência técnica. A ausência de bonificações, programas de mentoring ou iniciativas de engajamento contribui para o distanciamento entre tripulação e empresas.

Impactos da evasão para o setor

A saída precoce de oficiais representa uma perda significativa de investimento — seja público, na formação, seja privado, no treinamento embarcado. Estima-se que formar um oficial até sua primeira certificação plena custa dezenas de milhares de reais, considerando toda a estrutura educacional e operacional envolvida.

Com a evasão, o setor perde:

  • Capital humano qualificado;
  • Know-how operacional e cultural;
  • Estabilidade na tripulação, afetando a sinergia a bordo;
  • Tempo de resposta, pois formar substitutos leva anos.

Além disso, aumenta a pressão sobre os oficiais remanescentes, que precisam assumir funções acumuladas ou substituir colegas inesperadamente. Isso alimenta um ciclo de estresse e novas saídas, gerando o chamado “efeito sanfona” na escalação.

Como reter talentos: caminhos possíveis

A boa notícia é que a evasão pode ser enfrentada com uma estratégia inteligente de gestão de pessoas. A seguir, algumas propostas validadas em experiências nacionais e internacionais:

  1. Planos de carreira claros e alcançáveis Empresas precisam comunicar de forma transparente os caminhos de crescimento dentro da organização. Isso inclui metas objetivas, prazos realistas e oportunidades internas de mobilidade. Promoções não devem ser apenas por tempo de serviço, mas também por mérito e capacitação.
  2. Escalas equilibradas e mais humanas Revisar os regimes de embarque é urgente. Escalas como 28×28 ou 21×21, combinadas com suporte psicossocial, são mais sustentáveis a longo prazo. O uso de ferramentas de previsibilidade (apps, calendários fechados com antecedência) ajuda os profissionais a se planejarem.
  3. Revisão de política salarial e bonificações Os reajustes precisam ser mais frequentes e, sempre que possível, acima da inflação. Além disso, é importante reconhecer desempenhos excepcionais com gratificações, diárias ou prêmios. Programas de participação nos resultados também têm mostrado bom impacto no engajamento.
  4. Investimento em formação continuada Estabelecer parcerias com instituições como ICN e FEMAR para formação técnica constante. Incluir treinamentos de liderança, comunicação intercultural, tecnologia embarcada e regulamentação internacional. Isso amplia a confiança e o compromisso dos oficiais.
  5. Programa de onboarding e mentoring Marítimos iniciantes precisam de acompanhamento no período de adaptação. Ter um oficial mais experiente como mentor acelera a curva de aprendizagem e fortalece os laços com a equipe. Isso reduz inseguranças e cria uma cultura de pertencimento.
  6. Ambiente de trabalho valorizado Melhorias nos alojamentos, alimentação, acesso à internet e tempo livre a bordo são diferenciais competitivos. Um ambiente mais humano gera bem-estar e reduz o desejo de abandonar a carreira.

A retenção de oficiais da Marinha Mercante é um dos pilares para a sustentabilidade do crescimento marítimo brasileiro. Valorizar esse profissional não é apenas uma questão de gratidão ou reconhecimento, mas de inteligência estratégica.

Com planos de carreira estruturados, condições humanas de trabalho, capacitação constante e uma visão de futuro compartilhada, o setor tem tudo para reverter a curva de evasão e consolidar um novo ciclo de prosperidade.

Mais do que manter oficiais a bordo, o desafio é inspirá-los a seguir navegando com orgulho, segurança e propósito.

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