O Brasil está vivendo uma das fases mais promissoras para a indústria marítima nas últimas décadas. Programas de incentivo como o BR do Mar, a expansão da frota da Transpetro e o crescimento constante da cabotagem reposicionaram o mar como eixo logístico nacional. Contudo, à medida que a frota cresce, um alerta grave se acentua: a escassez de oficiais da Marinha Mercante. Esse desequilíbrio entre oferta e demanda de mão de obra qualificada pode comprometer não apenas a eficiência operacional, mas a segurança das navegações e a competitividade do setor como um todo.
Um crescimento sem paralelo
De 2010 a 2024, o número de embarcações em operação no Brasil cresceu substancialmente. São mais de 650 embarcações atuando entre cabotagem, apoio marítimo, exploração e produção offshore. A Transpetro sozinha prevê a incorporação de 13 novos navios petroleiros e 8 gaseiros até 2030. A Petrobras planeja colocar em operação 14 novas plataformas FPSO entre 2024 e 2028. Esse crescimento exige, em números conservadores, milhares de novos oficiais qualificados para dar suporte às operações.
Projeções de déficit
Estudos conduzidos por universidades e entidades setoriais, como a USP em parceria com a CILIP, apontam para um possível déficit de 2 mil a 4 mil oficiais da Marinha Mercante até 2030. Essa lacuna pode comprometer tanto a operação de novos navios quanto a manutenção da frota atual, dada a crescente taxa de evasão da carreira marítima e o ritmo insuficiente de formação de novos profissionais.
Hoje, o Brasil forma cerca de 200 a 300 oficiais por ano por meio das duas escolas EFOMM (CIAGA e CIABA). Para evitar o colapso na oferta, esse número deveria dobrar imediatamente. Além disso, a reativação de cursos como ASON e ASOM, que oferecem uma via acelerada de formação para quem já tem ensino superior, é considerada estratégica, mas está inativa desde 2007.
Impactos operacionais já visíveis
A escassez de oficiais já está afetando diretamente as operações marítimas. Empresas relatam dificuldade crescente na escalação de tripulações completas, o que acarreta:
- Dobramento de funções e aumento da carga horária embarcada;
- Fadiga da tripulação, comprometendo a segurança da navegação;
- Atrasos em escalas e indisponibilidade de navios por falta de oficiais habilitados;
- Elevação dos custos operacionais com contratação emergencial de substitutos;
- Multas por descumprimento de exigências regulatórias da Normam-101 e da RN-42.
A média de tempo para a revalidação de certificados profissionais ultrapassa 90 dias em algumas regiões, o que aumenta ainda mais os desafios logísticos. Em um setor onde o planejamento é fundamental para a segurança e produtividade, esse tipo de gargalo é inaceitável.
Desafios na formação e retenção
A capacidade instalada de formação de oficiais no Brasil é limitada pela estrutura da Marinha, que controla rigidamente o currículo e o número de vagas. A entrada de novos alunos é definida ano a ano, e depende de orçamento público e de diretrizes militares. O resultado é um sistema que não responde com agilidade às flutuações do mercado.
Para piorar, mesmo os oficiais formados enfrentam barreiras para se manterem na carreira. Dados do Sindicato dos Oficiais (Sindmar) mostram que cerca de 60% dos oficiais deixam a vida embarcada nos primeiros anos de atuação. Os principais motivos:
- Longos períodos longe da família;
- Regimes de embarque extenuantes (60 dias ON / 60 OFF);
- Salários que não evoluíram acima da inflação nos últimos anos;
- Falta de perspectiva de crescimento rápido na hierarquia;
- Estresse e condições adversas de trabalho a bordo.
A evasão também é explicada pela migração para carreiras em terra, como portos, administração marítima, praticagem ou mesmo setores completamente distintos. A transição, embora compreensível, representa perda de capital humano altamente treinado.
Riscos à segurança e à competitividade
A ausência de oficiais experientes e certificados compromete a segurança da navegação. Casos de incidentes por erro humano aumentam em contextos de fadiga, pressão e improviso. Além disso, o uso de oficiais estrangeiros (quando autorizado em caráter emergencial) pode gerar barreiras culturais, de idioma e adaptarção, principalmente em navios de bandeira brasileira.
Do ponto de vista estratégico, o Brasil corre o risco de perder espaço no mercado internacional de trabalho marítimo, hoje dominado por países que formam oficiais em larga escala como Filipinas, Índia e Grécia. Sem oficiais brasileiros com proficiência em inglês e formação compatível com as exigências da IMO (International Maritime Organization), nosso setor perde capacidade de inserção global.
Caminhos para a solução
Resolver esse cenário passa por uma estratégia integrada que contemple:
- Expansão perene da formação: aumento permanente do número de vagas na EFOMM e reativação dos cursos ASON/ASOM.
- Integração com o setor civil: possibilidade de parcerias com universidades para formação dual (acadêmica e profissional).
- Digitalização dos processos de certificação: emissão de certificados em tempo real, com validação eletrônica.
- Incentivos à retenção: planos de carreira estruturados, bonificações por tempo de serviço e melhor qualidade de vida a bordo.
- Programa de retorno ao mar: recuperação de oficiais afastados com reciclagem rápida.
- Promoção da carreira marítima: campanhas de valorização profissional, com foco em jovens.
A escassez de oficiais da Marinha Mercante é um problema real, urgente e de impacto sistêmico. Ignorá-la é comprometer todo o ciclo de crescimento do transporte marítimo brasileiro. Nenhum navio navega sozinho — por trás de cada embarcação, está o trabalho de homens e mulheres altamente capacitados, que precisam ser formados, valorizados e mantidos na atividade.
O futuro da cabotagem, do offshore, da exploração de recursos e da inserção internacional do Brasil depende de uma ação imediata. É hora de tratar a escassez de oficiais como questão de Estado, com soluções técnicas, investimentos consistentes e colaboração entre todos os agentes da cadeia marítima.
Navegar com segurança e competitividade começa com gente. E é por isso que a formação e retenção de oficiais precisa estar no centro da agenda marítima brasileira.