A cabotagem, sistema de transporte marítimo entre portos do mesmo país, tem sido um dos grandes protagonistas da transformação logística brasileira nos últimos anos. Com um litoral de mais de 8 mil quilômetros navegáveis e infraestrutura portuária em expansão, o Brasil finalmente começou a explorar de forma mais estratégica sua vocação marítima. E no centro dessa evolução está o programa BR do Mar, que, aliado a investimentos estruturais como os da Transpetro, vem consolidando a cabotagem como alternativa competitiva e sustentável frente ao transporte rodoviário.
Uma década de mudanças e o impulso recente
Historicamente, a cabotagem no Brasil sofreu com baixa competitividade, regulamentações restritivas, escassez de embarcações e infraestrutura limitada. Contudo, nos últimos dez anos, o cenário mudou substancialmente. Dados da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários) mostram que entre 2012 e 2022, o setor já dava sinais de aquecimento, mas foi entre 2023 e 2024 que a curva se acentuou.
Em 2023, o volume de contêineres transportados por cabotagem atingiu 1,29 milhão de TEUs (unidade equivalente a um contêiner de 20 pés). Já em 2024, esse número saltou para 1,55 milhão de TEUs, marcando um crescimento de aproximadamente 20% em apenas um ano — a maior taxa desde o início da série histórica. Essa movimentação recorde consolida uma tendência que já vinha se desenhando com a aprovação e implementação efetiva do programa BR do Mar.
BR do Mar: liberalização e estímulo à concorrência
Sancionado em janeiro de 2022, o BR do Mar foi um divisor de águas. O programa tem como objetivo fomentar a cabotagem brasileira por meio da modernização das normas de afretamento de embarcações, estímulo à concorrência entre operadores e desburocratização do setor.
Um dos principais pilares da política é a flexibilização do uso de navios estrangeiros afretados por empresas brasileiras — sem exigência de construção de embarcações no país. Essa medida, ao mesmo tempo em que desafoga a demanda reprimida por capacidade de transporte, reduz custos operacionais e permite que novos players entrem no mercado.
Como resultado, empresas como Log-In, Aliança Navegação e Mercosul Line aumentaram significativamente sua frota e frequência de escalas. E novas empresas brasileiras de navegação surgiram, como Norcoast e Braskem. A Log-In, por exemplo, saltou de 7 para 9 embarcações operando na cabotagem em 2023, com previsão de novas aquisições até 2025. Além disso, armadores internacionais demonstraram interesse crescente em atuar sob o regime de afretamento temporário.
Investimentos estratégicos: o papel da Transpetro
O crescimento da cabotagem não está dissociado dos investimentos estratégicos realizados por empresas estatais e privadas. A Transpetro, braço logístico da Petrobras, anunciou em 2025 a contratação de 13 novos navios petroleiros tipo MR1, com entregas previstas a partir de 2025 até o final da década. A companhia também lançou um edital internacional para a construção de 8 navios gaseiros, o que triplicará sua capacidade de transporte de GLP, saltando de 36 mil para 108 mil m³.
Esses investimentos têm efeito multiplicador. Além de ampliar a capacidade da frota, impulsionam a indústria naval brasileira e exigem mão de obra qualificada, o que movimenta a cadeia produtiva e estimula programas de formação técnica. Importante destacar que os contratos da Transpetro exigem 40% de conteúdo local, reforçando o papel indutor do Estado no desenvolvimento econômico.
Cabotagem como vetor logístico nacional
Além dos números expressivos, o avanço da cabotagem tem contribuído para uma reorganização logística no Brasil. Tradicionalmente dependente do modal rodoviário — responsável por mais de 60% do transporte de cargas — o país tem enfrentado gargalos crônicos como custos elevados, desgaste de infraestrutura, emissões de carbono e riscos de segurança.
A cabotagem surge, nesse contexto, como uma solução mais segura, econômica e ambientalmente responsável. Segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT), transportar carga por via marítima pode ser até 30% mais barato e 80% menos poluente do que pelas estradas.
Essa lógica já tem refletido nas decisões estratégicas de grandes embarcadores. Empresas dos setores químico, alimentício, automotivo e até e-commerce estão redesenhando seus fluxos logísticos para aproveitar a estrutura de cabotagem. O número de rotas regulares aumentou, e a integração com portos secos e ferrovias vem crescendo gradualmente.
Comparativos históricos e projeções
Para se ter uma ideia da evolução, em 2010 a cabotagem brasileira movimentava cerca de 390 mil TEUs. Em 2015, esse número já superava os 600 mil TEUs, e em 2020 ultrapassou a marca de 1 milhão de TEUs. Com a movimentação de 1,55 milhão em 2024, o setor praticamente quadruplicou em 14 anos.
As projeções da ANTAQ e da EPE (Empresa de Pesquisa Energética) indicam que, mantido o ritmo atual, a cabotagem pode alcançar 2 milhões de TEUs anuais até 2026, especialmente com a entrada de novos terminais portuários privados (TUPs) e a digitalização dos processos logísticos.
Desafios e pontos de atenção
Apesar do avanço, o setor ainda enfrenta obstáculos relevantes. O principal deles é a formação e retenção de mão de obra qualificada. Estudos recentes apontam para um déficit potencial de até 4 mil oficiais mercantes até 2030, se não houver ampliação urgente da capacidade formativa em escolas como a EFOMM, CIAGA e CIABA.
Além disso, questões burocráticas, como a emissão e renovação de certificados profissionais, ainda travam a disponibilidade imediata de tripulantes. É necessário avançar na digitalização dos processos regulatórios e ampliar o número de vagas de praticagem e treinamentos embarcados.
Outro desafio está na infraestrutura portuária. Ainda há portos com baixa eficiência operacional e gargalos logísticos no hinterland (área de influência terrestre), o que limita o pleno aproveitamento do modal marítimo. A modernização e integração intermodal são temas centrais para os próximos anos.
Os próximos passos
O futuro da cabotagem brasileira depende de ação coordenada entre governo, setor privado e sociedade civil. Três frentes são particularmente estratégicas:
- Formação profissional contínua: expansão de vagas, reativação de programas como ASON/ASOM e valorização da carreira marítima.
- Ambiente regulatório modernizado: revisão da Normam-101, maior integração com normas internacionais e redução da burocracia.
- Infraestrutura portuária e digitalização: investimentos em dragagem, automação portuária e corredores logísticos inteligentes.
A consolidação da cabotagem não é apenas um objetivo econômico, mas uma necessidade estratégica nacional. Ela reduz nossa dependência rodoviária, fortalece a indústria naval, gera empregos de qualidade e contribui para metas ambientais.
A cabotagem brasileira vive hoje um momento inédito. Com recordes de movimentação, políticas públicas bem direcionadas e investimentos robustos, o setor se afirma como eixo estruturante da logística nacional. Os desafios existem — e são complexos —, mas os avanços conquistados provam que o país tem, sim, capacidade de transformar sua geografia em vantagem competitiva.
Para isso, é preciso continuar apostando em planejamento de longo prazo, diálogo com o setor produtivo e foco na valorização do capital humano. O mar está abrindo novos caminhos — cabe a nós navegar com responsabilidade, ousadia e visão de futuro.